quinta-feira, 22 de abril de 2021

O cristão degradê e a sã doutrina

Cristãos degradê

O espírito do tempo é um dos males que mais tem penetrado no meio da comunidade cristã, produzindo estragos de tal ordem que identificarmo-nos como cristãos é uma tarefa difícil, porque tal identidade passou a ter vários matizes e variadas flexibilizações. Diria que nem com mosaico se parece. Está mais para pintura degradê, que na parte de cima começa com uma cor, cujos tons vão se alterando de forma sutil, até chegar na parte de baixo com outra cor completamente distinta da cor do início. É como dizer que temos cristãos de todos os tipos para todos os gostos, sem que haja entre eles uma distinção definida de cores. São cristãos degradê. Essa é a frase que mais se ouve em seus lábios: "o que importa é amor!"

Sem me prender a outros, há pelo menos dois exemplos que identificam o cristão degradê. Ele aparece na fala de certo pastor, que defendeu uma espécie de santidade interior sem considerar o lugar onde a pessoa está ou o que ela esteja fazendo. É uma forma sutil de encaixar na mensagem evangélica o universalismo. "Vivam do modo que quiserem. Ao final todos serão salvos. O que importa é o coração". O segundo exemplo, também reverberado pelo mesmo pastor e por muitos outros que seguem na mesma trilha, é o de que não existe doutrina correta, perfeita, sã, capaz de expressar a verdade da Escritura. É como se nesse cipoal doutrinário pós-moderno cada um possa agarrar-se ao seu cipó, chegando aos mesmos resultados diante de Deus.

O problema de ambos os pressupostos é que descaracterizam a fé bíblica e a transformam num caldo sem sabor definido, mais para insosso, cuja aparência não permite sequer definir a natureza do conteúdo: se é goiaba, maçã, pera, laranja, uva ou qualquer outra fruta comestível. Mais parece uma mistura de ervas daninhas com pitadas de algum fruto só para tentar enganar quem precisa nutrir-se. Noutra ponta, é dizer ao ouvinte ou leitor que ele é o senhor da interpretação, como advoga a "teologia da experiência", tomando a Escritura como um livro onde determina a seu bel-prazer o certo ou errado, ou, sendo mais assertivo, o certo ou errado dependem da perspectiva de cada um. Sob esse ponto de vista, reunirmo-nos como igreja é uma desnecessidade. Total perda de tempo. Cada um estabelece o próprio caminho. Todos "dão na venda". É a deixa em que muitos "desigrejados" sustentam o seu discurso.

Como os nossos pressupostos baseiam-se na Escritura, é nela que devemos buscar a resposta para os dois exemplos usados neste ensaio. Mas não com a perspectiva do leitor como sujeito e, sim, buscando entender, como ponto de partida, o significado pretendido pelo autor, evitando saltos carpados, exegeses complexas, longos e muitas vezes abstratos conceitos, mas desvendando da forma mais simples possível, sob a iluminação do Espírito Santo, o que Deus nos revelou como padrão, tanto para a igreja como para cada cristão. A não ser assim, tornar-nos-emos presas fáceis do cipoal doutrinário, onde não se consegue distinguir sequer por onde os cipós estão subindo e aonde chegarão.

A primeira premissa mostra-se logo inepta por uma razão essencial: não há como dissociar a santidade interior das evidências externas que ela manifesta. É uma dicotomia ou divisão inexistente. A própria natureza nos ensina que a árvore má produz maus frutos e a árvore boa produz bons frutos. A substância das ações revela a essência que as produz. Jesus mesmo corrobora o conceito ao confrontar fariseus e doutores da lei, afirmando que "não se colhem figos de espinheiros, nem dos abrolhos se vindimam uvas", Lucas 6.44,45. A santidade bíblica é completa, plena, transparecendo em todas as áreas da vida cristã. É bem verdade que o processo começa de dentro para fora, nunca ao contrário, mas compreende espírito, alma e corpo, nessa ordem, 1 Tessalonicenses 5.23.

Não há qualquer vislumbre na Escritura que subentenda a hipótese de o cristão viver uma vida de piedade e ter, ao mesmo tempo, uma vida mundana, dissoluta, com entrega voluntária ao pecado. São possibilidades incompatíveis. Como se costuma dizer nas redes sociais, os dois não dá. Ou se vive a santidade ou se vive a vida mundana.Tentar conciliar as duas posições é mais do que vulgarizar a graça. É renegá-la. É fazer dela um instrumento estéril. É presumir que a graça deleita-se com o pecado, quando, ao contrário, a mesma graça que salva instrumentaliza a nossa santificação. Ela nos conduz às "boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas", Efésios 2.10.

Tal proposição não implica afirmar a nossa impecabilidade, porque, embora estejamos crucificados com Cristo e tenhamos morrido para o mundo (Gálatas 2.20), esse não é um processo estático, mas contínuo e crescente à medida que mortificamos diariamente a nossa carne, cuja natureza - a Bíblia diz - é propensa ao pecado. A ideia da impecabilidade, isto é, de que não mais pecamos, é uma interpretação forçada e extrema de 1 João 3.6 como traduzido na Almeida Revista e Corrigida: "Qualquer que permanece nele não peca; qualquer que peca não o viu nem o conheceu". 

Primeiro, porque a mensagem no original significa que o cristão não vive deliberadamente pecando, não é dado ao pecado, não faz dele uma prática habitual. Outras traduções e versões traduziram com maior clareza o texto. Segundo, se o verso defendesse a impecabilidade, estaria em contradição com o próprio contexto e outras passagens que aludem à probabilidade de pecar, reforçando, inclusive, a luta permanente - sempre a partir da graça santificadora do Espírito - contra as paixões da carne. Cito apenas um verso do próprio João que resume de forma magistral tudo o que a Palavra de Deus diz a respeito: "Filhinhos meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo", 1 João 2.1 (grifo meu).

Esta é a verdade, em poucas palavras: a santidade é inconciliável com a vida deliberadamente pecaminosa. O cristão não a experimenta, se habitualmente, como prática cotidiana, entrega-se a uma vida desregrada, lança-se na lama podre do pecado, joga-se no precipício das paixões infames, abebera-se das fontes de águas turvas, sem que isso lhe cause qualquer sentimento de repulsa. Por outro lado, quem experimenta a santidade, jamais desejará correr em busca do pecado, as suas paixões serão contidas pela graça, mas se vir a pecar, o seu coração sentirá a tristeza segundo Deus, que o levará ao sincero arrependimento, não desejando jamais repetir as mesmas práticas, 2 Coríntios 7.10.

Com isso, chegamos à segunda premissa: a de que não há doutrina correta. Cada um que suba no seu cipó. Mas a própria exposição em síntese que acabei de fazer sobre a santidade bíblica mostra que a afirmação não é só frágil. É errada e inconsistente com a Escritura. Diria mais: torna a Palavra de Deus submissa ao pensamento humano e dá voz a toda sorte de achismos. A Reforma resgatou o livre exame, já que até então o povo não tinha acesso à Bíblia. Era restrita ao sistema sacerdotal romano. Mas em nenhum momento afirmou que cada um a interprete como quiser.

Enquanto Lutero esteve escondido no castelo de Wartburg, traduziu o Novo Testamento para o alemão e em 1522 foi publicada a primeira edição da Bíblia por ele traduzida. Embora já houvesse outras traduções, foi a que mais teve repercussão à época. O povo começou a desfrutar da oportunidade de examinar de per si a Escritura. Mas livre exame é diferente de livre interpretação. Ler a Bíblia com os pensamentos já pré-condicionados é usá-la apenas como pretexto. É preciso lê-la com o coração aberto, usando as ferramentas certas, para que o Espirito Santo nos induza a compreender e aceitar as verdades que ele revela e não prevaleçam as nossas deduções.

A leitura dos salmos, por exemplo, permite-nos perceber que os salmistas apontam fartamente a Palavra de Deus como reta, pura, santa, verdadeira, engrandecida, iluminadora, antídoto contra o pecado e desejável, entre tantas outras definições que asseguram a sua singularidade e autoridade. O profeta Jeremias, com suas ricas metáforas, viu a Palavra de Deus como um martelo que esmiúça a penha, ou seja, capaz de quebrantar o coração mais endurecido, Jeremias 23.29. Outras citações do AT poderiam ser mencionadas, mas o fato é que nenhum livro ocupa essa dimensão, se for um compêndio humano. A Escritura é a reta palavra de Deus e contém a reta doutrina emanada de sua própria boca por inspiração do Espírito Santo aos instrumentos humanos designados pelo Altíssimo para escrevê-la..

Em seu confronto com os fariseus, o próprio Jesus autentica a validade da Escritura ao reconhecer que eles, embora estivessem em contradição com a mesma Escritura, examinavam-na com o propósito de encontrar nela a vida eterna e por saberem que ela testificava acerca do Messias, João 5.39. O texto não é um mandamento, mas a constatação de que os fariseus a examinavam com a premissa certa, mas a interpretação errada, pois não reconheciam a Jesus como o enviado de Deus (ver o verso seguinte). No caminho de Emaús, outra vez autentica a validade do AT ao encontrar-se com os dois discípulos frustrados. Ele os repreende, abre os seus olhos, mas o faz expondo-lhes toda a Escritura, começando por Moisés. Na sequência, apresenta-se aos discípulos, certamente no Cenáculo, em Jerusalém, e expõe os mesmos argumentos -  Tota Scriptura - só que desta vez alude à classificação usual da Bíblia Hebraica naquela época: Moisés, Profetas e Salmos, João 5.44-49. Ou seja, se a Escritura e a doutrina por ela exposta não forem classificadas como retas e verdadeiras, que sentido faz a existência da Igreja?

No entanto, o tema da reta doutrina costuma ser levantado em relação às epístolas, como se fossem menos inspiradas e tivessem menos valor e menor autoridade do que as palavras do Senhor. É tanto que os defensores da tese apelam para definir que Jesus é a chave hermenêutica de modo que tudo mais tem de ser interpretado segundo a sua perspectiva, descartando-se o que não estiver aí enquadrado. Soa até bonito e atraente. Mas é uma premissa falsa. 

A primeira razão é que os registros das palavras de Jesus foram feitos por outras pessoas, nos evangelhos, não pelo próprio. Não há qualquer documento que ele tenha escrito de próprio punho. Ou seja, se acreditamos na fidelidade dos registros do que ele disse, feitos por terceiros, nos evangelhos, por equivalência devemos acreditar nos demais livros do NT, visto que em relação ao AT, como já vimos, o Senhor mesmo o vaticinou. A segunda razão é que o conteúdo das epístolas, bem como a narrativa lucana em Atos refletem os ensinos de Cristo e em sua maior parte detalham a sua doutrina encontrada em resumo no Sermão do Monte.

Portanto, todas as vezes em que os autores do NT advogam a defesa da sã doutrina  isso implica não só que ela espelha a doutrina de Cristo (2 João 1.9), mas que os seus ensinos são verdadeiros e assim devem ser recebidos, Tito 2.1. É digno de nota que Paulo ao ensinar sobre a Ceia do Senhor à igreja de Corinto é bastante assertivo: "Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei", 1 Coríntios 11.23. Por extensão, significa que todo o seu ensino oral e escrito tiveram origem em Cristo. Aliás, em sua epístola escrita aos Gálatas, para combater os ensinos perversos do legalismo, deixa isso claro (1.11,12), acrescentando que os apóstolos lhe estenderam a "destra da comunhão", o que basicamente significa que a sã doutrina por ele pregada era a mesma pregada pelos apóstolos.

Ora, se há a sã doutrina, pura, santa e perfeita, como registrada na Escritura, a mesma Palavra refere-se também à falsa doutrina. O próprio Jesus deixa implícita a sua existência ao condenar os fariseus por ensinarem "doutrinas que são preceitos de homens", Marcos 7.7. Nas epístolas são chamadas de "doutrinas de demônios" (1 Timóteo 4.1), "vento de doutrina" (Efésios 4.14) e "doutrinas estranhas". Ao mesmo tempo há sérias advertências contra aqueles que proclamam a falsa doutrina e recomendações fortíssimas para que não lhes emprestemos os ouvidos, a mente e o coração, 1 Timóteo 1.3-5; 1 João 1.7-11; Gálatas 1.8. Chegamos, então, ao ponto que esta postagem quer afirmar: há uma doutrina, reta, santa, pura, sã, perfeita revelada na Escritura e que cabe a nós buscar entendimento, mediante a iluminação do Espírito Santo, para entendê-la em contraponto ao veneno mortal da falsa doutrina.

Mas ao final desta primeira postagem sobre o tema, é preciso responder a uma pergunta: por que, ainda assim, há esse imenso cipoal doutrinário, além de cristãos que eu chamo de degradê por concordarem com tudo quanto lhe ensinam sem cotejar com a Escritura? Em poucas palavras: 1) equívocos na interpretação da Escritura; 2) orgulho por serem mestres de si mesmos; 3) vida cristã rasa que pouco valoriza a Palavra de Deus; 4) consideram a Escritura insuficiente e vivem em busca de novidades; 5) desejo pecaminoso de impor o seu pensamento como verdade, e 6) considerar-se como alguém mais sublime, que alcançou outro nível de conhecimento, sendo por isso capaz de encontrar "verdades reveladas" ainda ocultas ou subliminarmente escondidas no próprio texto bíblico.

Na próxima postagem, falaremos sobre a sã doutrina ao longo da tradição cristã.

3 comentários:

Francinaldo disse...

Excelente 👏👏👏

Levi di Suethi disse...

Muito bom!

soldadovalente disse...

Dizer o que de o texto maravilhoso apenas agradecer!